Disneylândia de gente grande
Meu nascimento em 1992 (que se você olhar direitinho, significa ter quase trinta anos!) me qualifica a membro honorário da geração millenial. A turma que veio antes nos enxerga como eternos acomodados, afundados até o cerne da alma em uma interminável síndrome de Peter Pan. Já para o pessoal da geração Z, somos “cringe”, por conta das nossas constantes reclamações sobre boletos e apreço por filmes da Disney: será que eles entendem o que síndrome de Peter Pan significa?
Particularmente, esse conflito etário não me atinge muito, visto que toda linhagem considera-se mais desperta que os antecessores e profundamente mais inteligente que os próximos — a juventude é sempre composta por uma galera nonsense, “porque no meu tempo era diferente!”.
Esse é o ciclo da vida.
Como é impossível agradar a todos, vou deliberadamente escrever para desagradar. Compartilho nas próximas linhas a epopéia da última semana, batizada carinhosamente como “Disneylândia de gente grande”. Embarque comigo nessa jornada pela Terra do Nunc… digo, por Tel Aviv e surpreenda-se com o final feliz (ou não) que apenas a montanha-russa da vida adulta pode proporcionar!
Aperte os cintos, o piloto sou eu! Vem turbulência por aí…
Para começar, um pouquinho de contexto:
Vim para Israel com a intenção de não voltar. Os cinco meses passados no país serviram para consolidar essa vontade e transformá-la em ação. Comecei a mover meus peões para conquistar a cidadania desse lado do mundo. O Estado Judeu — como o nome indica -, não é laico. Há, portanto, que se provar parte do “Povo Escolhido” para garantir o ingresso, baseado na “Lei do Retorno”, que garante a qualquer membro da “Tribo de Abraão” o reingresso à “Terra Prometida”.
Vocês gostaram da quantidade de sinônimo que eu encontrei pra judeu? Até eu fiquei surpreso!
Ok, mas como você prova a origem judaica?
“Mostra o pinto!” — responderia o tiozão, inconvenientemente bêbado, no jantar da família. Aquele lá que te condena por não querer crescer, sabe?
Só para deixar claro, não é assim que funciona.

Basicamente, você precisa de carta, escrita a punho, por um rabino com pelo menos 30 anos à frente de uma comunidade, e benzida no Monte das Oliveiras por um sacerdote. Após o ritual, o papel deve descansar por duas semanas no Muro das Lamentações, o local mais sagrado do mundo para os antigos escravos do Egito (mais um sinônimo pra judeu aí, tá vendo?). Após cumprir todas essas etapas, a escritura chega ao Ministério da Imigração e passa por análise minuciosa dos escrituários.
Era mais fácil mostrar o pinto, né?
Depois de passar pela perícia cautelosa dos agentes governamentais, a carta deve ser assinada pelo Rabino Maior do Estado de Israel e, então, você pode parar de acreditar nesse monte de mentira que eu estou escrevendo. Te peguei, né? Tá vendo como é fácil acreditar em fake news quando você desconhece sobre o tema?
Ok, a parte sobre precisar da carta de um rabino é verdade, mas ele não precisa ter três décadas de experiência, nem escrever a mão, na real. Pode ser no computador. Não vou nem entrar no mérito de todo esse crivo religioso — não acredito que você acreditou nisso!
Mas enfim, apesar de não ser uma aventura tipo a de Moisés com as Tábuas da Lei, requer uma dose de burocracia para conseguir toda a documentação necessária. Tem que solicitar o “apostillamento” (é com dois Ls mesmo, tá errado não) de certidões, antecedentes criminais e uma série de outros requerimentos. Isso seria uma dor de cabeça imensa: gerenciar toda a operação para dar ok na papelada. Eu em Israel, o resto no Brasil.
Vai imaginando…
O que eu fiz para resolver? O mesmo que todo millenial e jovem judeu desde que o mundo é mundo faz:
Pedi ajuda pra minha mãe.

Dona Debora tratou de mobilizar Deus e o mundo para a missão ser cumprida e, em tempo recorde, não só deu conta do recado, como já tenho tudo em minha posse aqui do outro lado do mundo.
Aliás, te amo mãe. Obrigado por tanto. Desculpa se você leu a parte sobre mostrar o pinto lá em cima.
Há situações na vida, no entanto, para as quais você não pode simplesmente esperar que sua mãe chegue lá e resolva.
Infelizmente, tá?
Sabe o que substitui a adrenalina na montanha-russa da vida adulta? Ansiedade. É legal a beça, você começa a se preocupar com o futuro, com o que está por vir, como vai resolver as situações, se você está tomando as decisões corretas, se você de fato tem talento pra qualquer merda, se toda a sua vida até aqui não foi uma mentira, se você é capaz de ser qualquer coisa além de alguém que passa os dias a choramingar pelos cantos e, às vezes, parece que tudo só faz se encaraminholar mais e mais na sua cabeça, sabe?
Eu adoro!
Enfim, mudanças trazem ansiedade. Com os documentos em mãos e o processo de cidadania iniciado, muitas dúvidas começaram a pipocar na minha cabeça. Onde vou morar? E dinheiro, como fazer? Em tese, só posso receber grana depois que o meu programa de estudos terminar, mas isso coincide com o dia que preciso deixar o apartamento onde estou.
Será que eu vou precisar morar na rua?
Só queria interromper isso tudo, porque no meio do raciocínio, enquanto eu escrevia a última frase, o celular colocou para tocar “O Mundo é um Moinho” do Cartola e eu achei pertinente pra cacete nesse momento.
“Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés”
Alguém avisa pro Cartola que não precisava mexer com meu coração dessa maneira, por favor? Tem músicas com o poder de te fazer chorar, essa é uma delas. Puta que pariu…
Ninguém quer ser a mulher dessa letra. Cavar abismo sob os pés, herdar apenas o cinismo de cada relação. Que vida miserável. É claro que você vai se decepcionar com as pessoas. E não é pouco, mas eu prefiro uma abordagem mais positiva:
“Vou mostrando como sou
E vou sendo como posso
Jogando meu corpo no mundo
Andando por todos os cantos
E pela Lei Natural dos Encontros
Eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas
Passado, presente
Participo sendo o Mistério do Planeta”.
Tatuei os Novos Baianos nos braços para nunca mais esquecer. Mesmo assim, de vez em quando, isso me escapa por alguns instantes.
Deixa eu retomar o ponto do Dani sem teto lá que o Cartola interrompeu. Para não viver uma vida cigana (que quando eu coloco nesses termos, na verdade, nem parece uma alternativa ruim), comecei a procurar apartamento.
Mentira. Não procurei porra nenhuma.
Na verdade, três dos meus atuais companheiros de ap encontraram uma locação incrível, e precisavam de um quarto integrante. Macaco queria banana e unimos o útil ao agradável.
Aí começou a Odisseia.
Lidar com corretor de imóveis não é a atividade mais fácil em nenhum lugar do mundo. Em Israel, meu camarada… Nossa, que dificuldade, bicho!
É uma grosseria sem fim e um jogo duro pra negociar, aí junta com a senhoria que também é daqui e vira uma discussão sem fim, às vezes em hebraico, e você não entende absolutamente nada, mas tenta contra-argumentar, só que aí eles começam a ser meio mal educados e você fica puto e quando vê tá todo mundo trocando mensagens ácidas no Whatsapp. Tipo aquelx ex-namoradx meio passivx-agressivx que todo mundo já teve.
Recomendo também, viu? Puta experiência maneira!
No fim das contas, resolvemos os trâmites todos, que envolviam um adiantamento de dinheiro substancial, um preço de aluguel considerável, três testemunhas locais que serviriam como fiadores e dor de cabeça. Muita dor de cabeça. Mas tipo uma quantidade de dor de cabeça que nem um coquetel batido com Neosaldina e Paracetamol conseguiria resolver, sabe?

Desse tipo aí.
Agora eu precisava tirar dinheiro de algum lugar. Passei os últimos seis meses trabalhando em um programa de estágio não remunerado, ainda que tivesse responsabilidades de alto cargo executivo. Acertamos a minha contratação na empresa ao término do programa, mas isso não seria possível sem o visto de trabalho, que só estará disponível para mim em setembro.
E aí? Bem, conversei com o chefe e pedi um adiantamento de salário substancial que só seria debitado no próximo mês, quando posso ser oficialmente contratado. Após uma conversa com os advogados da empresa, ele concluiu haver bases legais para proceder com a minha solicitação. “Bases legais para proceder” é mó jargão do povo do jurídico.
Ufa, resolvi o problema da grana!
Mas agora eu preciso abrir uma conta no banco…
Caraca, tá aí! Outra atividade gostosa demais! Ainda mais para quem ainda não é cidadão do país onde a conta será aberta. Aí é um espetáculo! Como não é tão difícil imaginar, boa parte das instituições não faz esse serviço para estrangeiros. Nem se passar por aquele processo que eu inventei do Monte das Oliveiras com Muro das Lamentações.
Encontrei, por fim, uma louvável instituição disposta a contar comigo. Como diria Groucho Marx, “eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”, mas não tive muita escolha dessa vez.
O nome da instituição… Presta atenção!
É DISCOUNT BANK!
Cacete, cara! Tem como ser bom esse negócio? BANCO DESCONTO parece negócio de rodoviária pra enganar velhinho a comprar crédito consignado!
Mas no caso, o velhinho sou eu!
Não teve jeito. Marquei um horário e cheguei lá no famigerado local pela manhã. Bonitaço, camisa de botão, calça social, tênis da moda, cueca limpa. Parecia que tava a caminho de um casamento (talvez o meu!), mas era só pra abrir conta no BANCO DESCONTO mesmo.
Banco é outro negócio que é a mesma merda em qualquer lugar do mundo. Aquele ambiente iluminado demais. Branco demais. Com mesas demais. Gente demais. Boa vontade de menos. Encantador! Banco tá entre as coisas que eu menos gosto em todo o mundo. Junto com coentro. Cara, imagina um banco feito pra armazenar coentro? Não dá para possivelmente vislumbrar um lugar mais odioso do que esse em todo o espaço sideral.
O gerente careca arreganhou os dentes naquele sorriso amarelo, típico de qualquer bancário, para contrastar com o branco do ambiente. Respirei fundo… Lá vamos nós!
Fui à mesa de atendimento. Piadinha sem graça pra cá, trocadilho sem graça pra lá. Hahaha, seu moço, que situação divertida! Aí veio uma coroa de óculos fundo de garrafa e um vestidinho caretaço de executiva que trabalha em banco — cara, com aquele cracházinho pendurado e o coque no cabelo então, ela era a personificação de pessoa que trabalha em banco. Ela encostou no guichê, e começou a bater boca com o careca que me atendia, interrompendo brevemente a triste sessão de stand-up comedy particular que ele estava performando para mim.
Você já viu duas pessoas conversando em hebraico?
Então, até serenata acústica e apaixonada sob o balcão do amor da sua vida parece uma hecatombe nuclear nesse melodioso idioma. Quando eles resolvem brigar… Não sei, de repente faz o banco de coentro não parecer uma ideia tão extrema assim. É feio demais de ver!
Resolvida a situação (ou não, não faço ideia!), a mais banqueira das banqueiras retornou ao lugar dela. O careca seguiu com meus documentos e começou a falar, em inglês, que não via a hora de sair de férias na terça-feira.
Ótimo clima para abrir uma conta no banco!
Seguimos por lá, ele pegou meu passaporte e falou alguma gracinha sobre meu último sobrenome ser longo demais. Achei que eu tinha me livrado desse estigma ao sair do Brasil. Qualquer serviço tupiniquim que requeria ser chamado por alguém — tipo sala de espera de consultório, por exemplo — sempre foi engraçado. A chamada acontecia mais ou menos assim:
“Daniel *engasgo* I-I- Ip”
“Sou eu, moça!”
Mas calma aí, no colégio judaico que eu estudei no Rio tinha Zylbergleyd, Szklarz, Szpacenkopf (tenta falar os três rápido!), entre outros. As pessoas em Israel não deveriam se surpreender com nomes difíceis e cheios de consoantes! É como uma marca registrada! Judeus patentearam sobrenome impronunciáveis!
Após coletar todos os meus dados, o nosso atendente desprovido de massa capilar, me empurrou algumas folhas de contrato para assinar. Sem sacanagem, foram umas setecentas e vinte folhas. Parecia até cena de desenho animado, eu assinando com duas mãos, dois pés e com a boca, enquanto o antônimo de Sansão seguia empurrando mais e mais páginas.
O melhor é que quase todas elas estavam em hebraico!
Cada uma com setenta parágrafos de texto corrido e letras miúdas. Como o atendente era dotado de um poder de síntese sobre-humano, ele se limitava a descrever a cada uma das páginas com duas ou três palavras.
“Pra autorizar a conta”
“Pro cheque”
“Pro cartão”
Porra, seu filho da puta! Não é possível que essa é toda a informação que você vai me dar dessa miniatura de Dostoiéviski que você tá jogando no meu colo!
Mas era. E eu seguia assinando.
No fim da última assinatura, ele disse algo como “bem-vindo ao banco”, eu olhei nos olhos dele e agradeci. Aí ele fez algo que mudou a nossa relação, até então praticamente amistosa, para sempre.
“De nada” , me respondeu no meu idioma.
Aí abri um sorriso tímido, porém legítimo. Apontei para ele com o dedo indicador e dei aquela piscadela marota de “ahá, mandou bem, hein cara!”. Podia ter terminado aí, eu ia embora de boa, ele voltava para um segundo round de discussão violenta com a banqueira das banqueiras, todo mundo ficava feliz. Mas não. Ele precisou…
“Desculpa, mas meu espanhol é tão bom quanto o inglês do meu filho de cinco anos! Ha ha ha!”
“Ô imbecil, não teve aula de geografia na escola, seu infeliz? Fica passando vergonha de graça todos os dias assim mesmo, seu cretino? Como é que alguém é capaz de contratar para trabalhar um paquiderme como você? Não é possível que você não tenha vergonha de beijar seus filhos com essa boca”, pensei.
Na prática, olhei fundo nos olhos dele, apenas.
“No Brasil a gente fala português, não espanhol”.
Sorriso amarelo, desculpas insinceras.
Foda-se, a conta está aberta e agora não tem mais nenhum problema.
Como pode alguém no mundo ser tão ingênuo quanto eu? Como a abertura de conta na instituição BANCO DESCONTO, com o GERENTE GARGAMEL poderia não dar errado?!

Pois é…
Cheguei ao escritório, joguei a mochila na mesa, tirei o laptop de dentro, e fui direto ao internet banking para, pela primeira vez, entrar na minha conta israelense. Só para ver se estava tudo certinho, se a operação foi um sucesso.
Fiz o login. Nome, senha, código de usuário. Processo de autenticação. Tudo certo! Abriu-se então a janela para minha conta dentro de banco. No topo direito, a saudação.
“Bem-vindo, Daniel Ghivelder HIPPRET”
Hippret…
Já tinha pedido cartão de débito, talão de cheque…
Tudo no nome do Daniel Hippret.
Respirei fundo, aquele misto de vontade de chorar com socar a cara de alguém com toda a minha força.
Liguei para o banco, no telefone disponibilizado pelo site.
“Tecle 2 para atendimento em Inglês”.
Teclei 2.
“Se quer falar com um de nossos atendentes, pressione 3”.
Pressionei 3.
O telefone começou a tocar As Quatro Estações do Vivaldi, enquanto uma voz bem genérica e mais entusiasmada que o necessário enumerava todos os benefícios do BANCO DESCONTO. Eu prestei bastante atenção, mas em nenhum momento o locutor falou sobre brigas entre funcionários no guichê de atendimento, ou errarem o nome do cliente, mesmo copiando diretamente dos documentos dele. Esses são os valores ocultos!
Atendeu uma moça.
“Banco Desconto, em que posso ajudar?”
“Então, eu abri minha conta com vocês hoje e preciso resolver um problema.”
“Qual é seu nome, senhor?”
“Esse é justamente o problema”.
Aí comentei sobre a troca de identidade, enquanto a atendente ouvia atenciosamente do outro lado. Ao final, EVIDENTEMENTE, ela não podia fazer nada a respeito. Eu deveria voltar à filial onde abri a conta e trocar uma ideia com o careca novamente.

Ainda tive um dia péssimo de trabalho, me desentendi com meus colegas. Parece que quando é pra algo dar errado, tudo resolve seguir pelo mesmo caminho. Acho impressionante esse poder que o universo tem de te sacanear sucessivamente em questão de minutos.
Pouco depois disso, um dos fiadores do apartamento desistiu de contribuir conosco e assinar o contrato. Uma cascata de catástrofes. Parecia daqueles vídeos com uma série de dominós empinados. Se você empurra um, todos caem. Só que nesse caso, você não se diverte muito.
Correndo contra o tempo, conseguimos reverter a decisão do último fiador, que acaba de deixar um autógrafo no documento que nos concede a casa. No dia anterior, tive uma conversa franca com meu chefe e aparamos as pontas, agora me sinto bem novamente.
Por fim, recebi o email da agência judaica. Toda minha documentação está de acordo — agora resta apenas uma entrevista com o ministério, agendada para o dia 12 de outubro (aguarde por cenas do próximo capítulo).
A vida adulta é uma montanha-russa mesmo. Você vai do céu ao inferno em uma fração de segundos, depois volta ao céu. É um looping infinito, um ciclo que se repete sempre. O objetivo final é jamais abaixar a cabeça, ou se dar por vencido. Pois mesmo nas horas mais escuras, algo eventualmente aparecerá para iluminar o caminho.
Às gerações que vieram antes: o mundo pode ser um lugar muito vil, tentem ser mais empáticos com quem vive no planeta que vocês conseguiram estragar de maneiras tão diversas. Aos mais novos, peço que não nos recriminem por gostarmos de filmes da Disney.
Faz bem à alma acreditar em final feliz.
