O Adeus de Malvina

Daniel Hippertt
7 min readNov 9, 2021

A vida é repleta de situações duríssimas, nas quais o ar parece ficar rarefeito. Desde o momento em que se nasce e durante toda a jornada humana neste planeta, haverá vez por outra momentos em que, inevitavelmente, as lágrimas irão escorrer pelo seu rosto.

Chorar faz parte da vida.

Eu acho interessante como os gatilhos para chorar se transformam com o tempo: no começo da caminhada, é puro instinto de sobrevivência. Bebês abrem o berreiro mais de uma vez ao dia, sempre que estão com fome, sono, ou sentem-se ameaçados de alguma forma. Quando a gente cresce, chorar deixa de ser um ato mecânico para mergulhar em simbologias. A água salgada passa a escorrer dos nossos olhos por sentimentos: tristeza, felicidade, saudade, raiva e, — meu favorito -, amor.

Até Picasso teve uma fase azul. Sentir faz parte da vida.

É mais saudável compreender que uma dose de melancolia faz parte da vida, ao invés de aprisionar emoções em um buraco escuro. Temos fases azuis e rosas, assim como aquele famoso pintor cubista…

Pessoalmente, sou um chorão de primeira linha. Tudo é motivo, sabe? Livro, filme, despedida, abraços longos e apertados, discursos poderosos, propaganda de dia das mães, acompanhar a noiva entrando num casamento, ver outras pessoas chorando, até esse vídeo de uma família Maori recebendo o filho no aeroporto me faz debulhar em lágrimas… Nunca me faltarão exemplos para ocasiões que deixam meus olhos marejados.

No último ano e meio, no entanto, um pensamento em especial é o principal responsável pelas minhas lágrimas. Infelizmente, não é algo alegre.

Malvina não era só uma avó fantástica. Ela foi a pessoa mais cosmopolita que tive o prazer de conhecer. Tão sábia e, ao mesmo tempo, dotada de incrível humildade para ouvir a qualquer ser humano. Capaz de bater papo sobre assuntos mil, além de contribuir ativamente com ideias e conselhos brilhantes. Vovó era muito à frente do tempo.

Eu e Malvina na última viagem que fizemos juntos.

Além disso, talvez tenha sido a maior apoiadora que tive na vida. Acreditava no meu potencial mesmo se todo o mundo virasse as costas para mim. Fazia muita questão de estar presente. Se o pequeno Dani precisava de alguém para levá-lo às aulas de inglês? Malvina estava lá. Teatro? Ela novamente. Apoio de matemática? Festas? Cinema? Eu poderia passar o resto do dia aqui enumerando ocasiões. Sempre que necessário, Malvina estaria lá para ajudar o neto, com uma paciência de Jó e todo o amor que possa caber num coração humano.

Penso que algumas das minhas melhores características são herança direta dessa relação: o senso de humor ácido, a habilidade e poder de discursar em público, respostas espontâneas, ou o entendimento de quando as pessoas ao redor só precisam de um bom ouvinte. Se eu sou remotamente talentoso em qualquer um desses aspectos, Malvina é a pessoa a se elogiar.

E sim, caso você não tenha a conhecido, é meu dever te informar:

Malvina morreu.

Vovó em seus últimos dias.

Agora você sabe o motivo pelo qual derramei tantas lágrimas. Desde que minha avó se foi, em abril de 2020, essa ferida permaneceu aberta no meu coração. Especialmente porque não foi possível a devida despedida.

A pandemia atacava com força e as mortes começavam a multiplicar-se. Malvina, que não se foi por Covid, foi obrigada a atravessar um enterro esvaziado. Logo ela, a mais cosmopolita das mulheres, sem praticamente ninguém ao redor para dar tchau.

Nem mesmo o neto que ela tanto levou às aulas de inglês e teatro.

Foda, né? Eu sei.

Para mim toda essa situação permaneceu como um capítulo não encerrado em uma história mal contada.

No começo de 2021 vim morar em Tel Aviv. Não costumo falar muito sobre isso, mas a mudança para Israel exigiu uma grande quebra de paradigma para mim. Não vou passar horas relatando traumas de infância, mas a bem da verdade, minha experiência dentro da comunidade judaica no Rio de Janeiro não foi das melhores. Nunca me senti incluído. Aliás, pelo contrário: sempre pareceu que eu não fazia parte daquilo.

As últimas gotas da minha herança judaica, por fim, residiam — adivinhem só — em Malvina. Ela era a guardiã das tradições, a pessoa preocupada em reunir familiares para feriados e dias festivos.

Depois que ela morreu e surgiu a oportunidade de mudar de país, eu comecei a entender que não poderia julgar todos os judeus do mundo por conta de três ou quatro idiotas que me fizeram mal lá atrás, na adolescência. Talvez Malvina fosse o parâmetro que eu devesse seguir.

No fim das contas vim para cá e acho que tomei a decisão certa.

Acho importante ressaltar que Tel Aviv é um país à parte. Uma cidade progressista, globalista, que aceita as diferenças e rompe com os laços conservadores. É diferente do resto do país.

Tel Aviv é incrível.

Por um fim de semana viajei a Jerusalém. A cidade sagrada para uma cacetada de religiões. Pivô de conflitos milenares, com um sítio arqueológico a cada esquina. Se você cava 50 metros está em Roma, se cava 100 está na Pérsia, mais um pouco e chega na Babilônia. O ar por lá é diferente, mais pesado, denso. Parece que os sentidos ficam mais aguçados. É um clima carregado de tensão, dor e ressentimento.

Jerusalém é meio filme de época, né?

Uma cidade que já viu muito sangue derramado, que presenciou diferentes povos travarem guerras pelo seu domínio, parece absorver um pouco da energia de cada ser que lá habita. É uma cidade viva, talvez até um pouco vilã.

Resumindo: Jerusalém é uma merda.

Cidade santa banhada a sangue.

Doa a quem doer. E olha que dói em muita gente, né?

Você já ouviu falar no Muro das Lamentações, com certeza. Ele é o espaço mais sagrado para o povo judeu em todo o mundo.

Por que aquela parede de pedregulhos amarelados é tão importante?

Ilustração bíbilica em texto meu é coisa rara.

É a parte da muralha que fica geograficamente mais próxima de onde se localizava a mais sagrada câmara existente no Segundo Templo, destruído pelo Império Romano.

Aliás, um momento de cultura para vocês: o Kotel Hamaaravi (nome em hebraico) não foi batizado de Muro das Lamentações pelos judeus, conforme eu pensava. Na verdade, o nome surgiu como uma espécie de ‘deboche’ dos outros povos que residiam na região, pois os descendentes de Abraão vinham àquela parede de pedra para chorar a destruição do Grande Templo. Com o tempo, o apelido pegou para todos.

Vivendo e aprendendo, né?

Eu havia visitado o Muro em 2008, durante um passeio da escola, e confesso que não senti nenhum chamado divino, ou alcancei qualquer tipo de iluminação interior.

Em 2021, bem mais vivido, consideravelmente mais cético e infinitamente mais politizado, tinha para mim que seria uma visita ainda menos significativa. Por um ponto de vista racional, faz bastante sentido essa conclusão.

Só que de vez em quando a vida não dá muito espaço pra racionalidade.

Chegamos ao muro para celebrar o Shabbat, o sétimo dia da semana, aquele em que Deus descansou, segundo a bíblia. Se dia de Igreja é domingo, dia de Sinagoga é o começo da noite de sexta e a manhã de sábado, já que se segue o calendário lunar.

Dani no muro (2021)

O muro divide homens e mulheres.

Porque sim.

TRADITION! TRADITION!

Então, nós que estavamos em um grupo de 80 pessoas, formamos clubes de Bolinha e Luluzinha e seguimos cada qual para um canto.

Já falei isso antes, mas eu acho que é importante reforçar: eu não sou uma pessoa religiosa. Eu não acredito nesse conceito de espiritualidade. Eu não acho que Deus, caso exista, é essa figura onipresente, onipotente e onisciente que rege o universo. Aliás, se Ele existe, eu espero profundamente que não seja mal como o cara do Velho Testamento, que manda pai sacrificar filho pra provar lealdade; dizima toda a sociedade com um dilúvio; castiga ‘depravados’ em Sodoma e Gomorra; destrói a civilização mais avançada da época com dez pragas. Que Deus Todo Poderoso é esse que precisa dominar pela Força?

Deus pra mim é Amor. Ou deveria ser, sei lá.

Enfim, eu não acredito em porra nenhuma disso.

Mas eu vivi um momento arrebatador no muro. Algo que não sei se as palavras que posso colocar no papel são capazes de explicar.

Éramos um grupo de pessoas celebrando o dia sagrado no local sagrado.

Todo Shabbat tem o Kaddish, a reza tradicional judaica que celebra a Santidade de Deus, e só pode ser proferida em Minyan (um quórum mínimo de dez judeus). Essa é também a prece dos enlutados, em memória àqueles que já partiram.

Então lá estava eu. No muro. O local sagrado. No Shabbat. O dia sagrado. Recitando o Kaddish. A reza santa para os enlutados.

E então lembrei de todas as aulas de inglês e teatro, do cinema, das festas, dos jantares, das conversas, das risadas, das piadas, dos conselhos, dos abraços, dos incentivos, da proteção, da dedicação, da presença marcante.

Do amor.

E comecei a chorar.

Mas não era um choro de tristeza, amargura, raiva ou incompreensão.

Era um choro de alívio.

Porque ali naquele momento um ciclo se fechava. O neto conseguiu, enfim, se despedir da avó.

Adeus, Malvina.

Obrigado por tanto.

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Daniel Hippertt

Sou um cara que enxerga graça em situações cotidianas, que rio de mim mesmo com frequência, e que tento fazer os outros rirem (talvez sem o mesmo sucesso).