O dia em que eu virei israelense

Daniel Hippertt
8 min readOct 15, 2021

--

Está cumprida a ‘Lei do Retorno’. Assinei os papéis que me concederam a cidadania israelense. Foi um processo surpreendentemente rápido, mas não por isso menos burocrático ou cansativo. Esse país aqui tem uma incômoda semelhança com o Brasil: qualquer serviço de repartição pública premia aquele que mais enche o saco e insiste. Não é necessariamente uma fila a ser respeitada, mas sim um querer se livrar da aporrinhação. Depois que entendi isso, passei a jogar as regras do jogo.

Esse camarada aí abriu o Mar Vermelho e possibilitou o retorno à casa.

Quando liguei para a Sochnut (leia-se Sornut) pela primeira vez, achei que rolava um certo despreparo. Só para contextualizar, essa é a Agência Judaica, o órgão responsável pela imigração, junto ao Ministério do Interior. No dia que decidi meu destino de permanecer por aqui um tempo, perguntei ao Google sobre o processo e entrei prontamente no site da instituição acima. Após alguns minutos de leitura, encontrei o número do telefone.

Na terceira tentativa, atendeu uma moça. Expliquei a ela, em inglês, toda a situação.

Brasileiro, já em Israel, com a intenção de permanecer.

Ela me disse, então, que eu deveria entrar em contato com um telefone específico para latinoamericanos no país.

Ok.

Liguei uma, duas, três vezes. Nada. Na quarta, a moça atende em hebraico.

“Alô, aqui é da Sochnut, como podemos ajudar?”

“Medaberet anglit?” — pergunto se ela fala inglês.

“Loh. Ivrit vê Sfaradit” — hebraico ou espanhol.

Parece que brasileiros não são latinoamericanos, no fim das contas. Realizar a operação no meu idioma, ou então na língua universal, não era possível.

“Entonces hablemos en español”.

“Muy bueno, como puedo ayudarte?”

Desembolei a conversa integralmente em espanhol. Foi por conta dessa ocasião que me dei conta que podia falar com boa fluência o idioma dos hermanos. Nos últimos meses, eu havia convivido com argentinos, chilenos e o mexicano Jaime e tentava sempre me comunicar na língua deles. Mas você só percebe que pode falar de verdade quando realmente precisa.

A moça me fez uma série de perguntas e disse que me encaminharia um formulário por email.

O arquivo chegou à minha caixa de entrada, advindo de um usuário ‘no-reply’. Havia dois questionários em espanhol e um endereço de email para o qual eu deveria enviar todas as informações. Resolvi tudo em menos de uma hora e enviei ao remetente indicado.

Uma semana passou e nada de resposta.

Talvez a fila seja muito grande, pensei.

Duas semanas e nem um “Recebido” depois, eu comecei a entender que precisava intervir.

Então, eu comecei a encher o saco. Um email a cada três dias, ligação semanal. E assim, infernizando a vida deles de pouco em pouco, fui avançando etapas. Eu gosto particularmente do que aconteceu depois de eu ter enviado todos os documentos necessários escaneados para a obtenção da cidadania. Depois de dois ou três dias sem resposta, meti um:

“Oi, tudo bem? Tudo certinho com os documentos?”

Veio a resposta de uma pessoa sem muita paciência:

“Não recebemos documento nenhum”.

Tem certeza, queridan? Procura direitin!

“Olha, eu recomendo você olhar direitinho na primeira mensagem. Se importa de checar novamente”?

Sem respostas.

Dois dias depois, ela veio. Sua entrevista está marcada para o dia 12 de outubro, às 9h: e isso ainda era 24 de agosto.

Ótimo. Coloquei na minha agenda do Google. Nesse intervalo, deu tempo de todos os meus documentos originais chegarem do Brasil: certidão de nascimento e antecedentes criminais, ambas apostilladas; e uma carta do rabino da sinagoga na qual realizei meu bar-mitzváh, que atestava meu judaísmo.

Sim, bicho. Se o rabino falou, tá falado.

Pelo menos eu pensava que era assim…

Cheguei ao local no dia 12 completamente esbaforido. Meu cartão de ônibus precisava ser recarregado, já que o mês para mim virava no dia 11. Eu tive um mês inteiro para planejar isso com calma, mas é claro que alguma coisa tinha que dar errado.

SE NÃO TEM UMA DOSE DE DRAMA NÃO É DANI, PORRA!

Foto antiga e conceitual para expressar o drama.

Minha rotina no dia 12 foi cumprida de acordo com o planejado. Acordei às 6h, me exercitei por uma hora, fiz café, comi, tomei banho, me arrumei e, às 8h, fui carregar meu cartão de ônibus dentro do aplicativo específico para isso.

Essa é uma tecnologia daqui que eu acho meio mágica. Você paga pelo aplicativo, aproxima o cartão do seu celular, e se ele tiver o leitor necessário, o cartão está automaticamente carregado.

Sério, bicho… Pra mim é meio Black Mirror, meio Blade Runner. Tem umas coisas que eu fico encafifado só de pensar como funciona, tipo wifi, que é um negócio que conecta seu computador à uma REDE MUNDIAL e PASSA PELO AR.

PELO AR, CACETE!

Ou aquela caixa muito doida que emite microondas concentradas de calor a ponto de esquentar sua comida. Parece enredo de história de origem de Super-Herói, mas é só o almoço.

Enfim…

O problema é que a tecnologia às vezes falha contigo. É raro, mas acontece sempre. Por exemplo, eu tenho ABSOLUTA certeza que qualquer impressora do mundo consegue FAREJAR a sua pressa. Sempre que é necessário imprimir algo, você precisa FINGIR que está tudo bem, para tentar ludibriá-la. Um mínimo sinal de ansiedade ou nervosismo e já era. Ela vai demorar 2 horas e meia para imprimir seu arquivo, ou imprimir na configuração errada, ou a tinta vai falhar, apesar do toner estar cheio.

Essa impressora te odeia.

Por que você acha que existe uma banda chamada “Inimigos da HP”?

Se a pressa é inimiga da perfeição, a impressora é o que temos de mais perfeito no universo.

O carregador do cartão viveu um dia de impressora e resolveu que não ia funcionar. Perdi 20 minutos tentando fazer dar certo, mas o aplicativo não estava me permitindo dar ok no número do cartão de crédito.

Então precisei me virar. É possível também contratar o serviço pela internet e ativar o cartão num ponto de recarga ou num caixa 24h (ATM Machine). Eu sabia que tinha uma máquina dessas a cerca de 5 minutos a pé aqui de casa. Era o tempo certo para sair e pegar o ônibus, que me deixaria no local em cerca de 18 minutos.

Saí já com o tempo contado. Fui num ritmo meio marcha atlética, meio cooper de gente rica em filme americano até a ATM machine.

E pela segunda vez no dia, a tecnologia olhou na minha cara e disse:

“Você que lute!”

O inferno estava fora do ar. Tela preta, 100% desligada. Aí o desespero começa a tomar conta. Não tenho mais tempo de manobra, nem ideia de onde posso recarregar o cartão. Olho no Google Maps e o ônibus chega em 7 minutos, estou a 10 do ponto em uma caminhada normal.

Saí desembestado, mais perdido que o Nemo no filme da Pixar, quase catando cavaco pela rua até chegar ao ponto de ônibus, bem a tempo de pegar a condução.

Não é que nem no Brasil, com catraca e cobrador. Você só entra e encosta seu cartão em uma maquininha que registra o pagamento. Dei uma de João Sem Braço, encostei minha passagem descarregada e, pela terceira vez, a tecnologia me condenou, apontando o calote.

Só que eu meti o louco e caguei para a tecnologia.

Só sentei e fingi que nem era comigo, rezando para que o infeliz do fiscal (humano, ainda bem não estamos na Matrix… ou será que estamos?) não subisse em nenhum dos pontos seguintes.

Não aconteceu.

Cheguei ao local suado, melado, esbaforido, mas ainda com uns sete minutos de sobra. O tempo de enrolar e fumar um cigarro.

Só uma curiosidade: todo prédio ou repartição pública de Israel é cerrado até os dentes com seguranças armados, detectores de metal, poços com crocodilos e pontes levadiças, mas o lugar que me mandaram para a entrevista não tinha sequer um guardinha barrigudo de cabelo branco.

Planta baixa de como funcionam os prédios públicos israelenses

Aliás, precisamos falar sobre a INSTITUIÇÃO guardinha barrigudo de cabelo branco, pois eu tenho certeza que você sabe muito bem o esteriótipo ao qual me refiro. Normalmente ele é meio grosseirão, está numa maré de mau humor desde 1977 e eu sempre fico me perguntando: “Ok, mas e se der alguma merda de verdade, o que esse cara vai fazer? Dar um sermão no assaltante? Ser deliberadamente preconceituoso? Sei lá, acho que não resolve muito”.

“Epa, pera lá! Aqui no meu turno não pode dançar homem com homem e nem mulher com mulher!”

Enfim, o prédio da imigração não contava com esse guardião mitológico. Estava completamente entregue. Entrei no elevador e desci até o local indicado.

Esperei um pouco pela minha vez e fui chamado cerca de 10 ou 15 minutos depois (resumindo, toda aquela correria foi a toa). Eram dois senhores atrás de uma mesa. Um mais velho, próximo dos sessenta anos, o outro umas duas décadas mais moço.

Começamos a falar em inglês. Clima bom.

“Trouxe os documentos?”

“Claro, senhor”.

Tirei tudo da pasta:

  • Certidão de nascimento
  • Antecedentes criminais
  • ATESTADO de Judaísmo
  • Fichas de imigração preenchidas
  • Quatro fotos 3x4

Eles começaram a recolher item por item e estava tudo indo bem. Até que o mais coroa catou meu atestado de judaísmo na mão.

Era basicamente uma folha timbrada com a logo da Sinagoga, duas frases em inglês que diziam basicamente “Esse corno aí é judeu e eu posso provar!”, e a assinatura com carimbo do rabino Sergio Margulies, a pessoa que conduziu meu bar-mitzvah.

O mais velho não ficou muito convencido.

Pegou o papel olhou, olhou, olhou, entregou para o companheiro do lado olhar, conversaram por uns trinta segundos em hebraico que pareceram 30 minutos e eu lá puto sem entender nada.

Os antecedentes criminais vocês nem olharam, né seus filhos da puta? Eu podia ser a Suzane Von Rischtoffen que ia passar batido, mas se não cortaram o meu pinto e não assisti “O Violinista no Telhado” na escola, aí temos um problema, né?

TRADITIIIIIIION! TRADITION!

Ainda sem se convencer, meu algoz passou a mão no telefone celular e começou a ligar para alguém.

Por algum motivo que não se pode explicar, ele trocou do hebraico para o francês com a interlocutora, então agora eu conseguia entender alguma coisa.

“Bonjour, je suis ici avec monsieur Daniel Hippertt, d’Argentine”

Aí meu sangue ferveu. Pode duvidar da minha ascendência judaica à vontade, mas NÃO ME CHAMA DE ARGENTINO!

“BRÉSIL! JE SUIS BRÉSILIEN!!!!!!” — esbravejei.

Ele me olhou com certa graça.

“Pardon. Daniel, du Brésil”.

A conversa durou mais uns quarenta segundos, nos quais ele perguntou sobre a sinagoga e o rabino e ouviu as afirmativas do outro lado da linha, antes de desligar.

“Hakol Besseder?” — tudo em ordem, perguntei em hebraico.

“Hakol Tov”, sim.

Assinei apenas quatro documentos diferentes e achei divertido o fato de que para virar cidadão eu precisava de menos esforço do que para abrir uma conta no banco.

“Volte na próxima semana com seu passaporte para pegar todos os seus papéis”.

Ok.

Saí pelas avenidas de Tel Aviv já me sentindo muito israelense.

Gritando com as pessoas na rua, buzinando os carros com intensidade e sem motivo e com uma súbita vontade de engravidar.

You’re not in Kansas anymore.

Your quest is just starting, Danithy. The wicked witch of the West is dead.

--

--

Daniel Hippertt

Sou um cara que enxerga graça em situações cotidianas, que rio de mim mesmo com frequência, e que tento fazer os outros rirem (talvez sem o mesmo sucesso).