Três casamentos e nenhum funeral (por enquanto)

Não faz tanto tempo assim que moro em Tel Aviv. Na verdade, acabo de ingressar no sexto mês de experiência aqui do outro lado do mundo. Não é muito difícil apontar as diferenças fundamentais entre Israel e Brasil, visto que são países completamente diferentes, mas com o tempo você começa a perceber essas divergências inclusive nos detalhes, sejam eles sociais, comportamentais, ou tradicionais. Por exemplo: eu nunca vi tanta mulher grávida na minha vida, quanto por aqui.
É impressionante!
Se alguém conduzir um estudo a respeito da quantidade de gestantes vs densidade demográfica, penso que esse país com míseros nove milhões de habitantes figuraria no topo da lista. Rapaz, mas que aptidão para fazer filho! E não tô falando só da galera religiosa, que basicamente tem por missão de vida rezar e se reproduzir. Não! É gente como a gente mesmo.
É tanto barrigão, carrinho de bebê e assento especial ocupado no ônibus que você não faz ideia!
Deve ser alguma coisa que jogaram na água, não é possível.
Por falar em água batizada, também é impressionante o porte físico dos israelenses, principalmente em Tel Aviv. É uma cidade na qual não existe obesidade, luta contra a balança, vigilantes do peso…
Nutricionista, com o perdão do trocadilho, passa fome por aqui.
Todo mundo é saradaço! Até as grávidas!
Sem sacanagem, dá para estudar a anatomia muscular do ser humano a partir do corpo do cidadão médio israelense. Na real, talvez seja possível, inclusive, descobrir novos grupamentos musculares. Eu achava que só era possível ter até seis quadradinhos na região abdominal, mas a rapaziada aqui tem 12, porra! Os quadradinhos têm quadradinhos! Coisa de louco, são esculpidos mesmo. Eu atravesso meu auge físico dos últimos dez anos e sou faixa branca perto deles.
Eu acho tudo isso muito engraçado, já que a figura judaica típica na minha concepção está personificada no Woody Allen. Magrelo, desajeitado, esquisito, profundamente neurótico…
Só que na prática, qualquer grávida na rua me deita na porrada se estiver a fim. Isso, enquanto embala o bebê com a outra mão e pratica uma série de exercícios de pilates.

Israelenses são também mais arraigados ao conceito tradicional de família do que os brasileiros, pelo que percebi por aqui. Parece que todo mundo está em busca de um relacionamento sério já no primeiro encontro. Eles têm a vida romântica norteada pela OBRIGAÇÃO de casar antes dos 30.
Eu acho meio surreal, mas talvez seja apenas recalque por me aproximar do prazo de validade.
Veja só: em apenas cinco meses, eu tive a oportunidade de ser convidado para dois casamentos, ambos de colegas de trabalho da empresa para a qual trabalho.
O primeiro foi o do CEO, logo nos primeiros 60 ou 80 dias dessa jornada. Foi uma cerimônia muito bonita, dançamos horrores, bebemos bastante whisky, comemos de um buffet maravilhoso até estourar.

Não vou entrar muito em detalhes, visto que o objeto dessa crônica é, na verdade, o segundo matrimônio — e a história para lá de inusitada que o rodeia.
Pois bem, no meio da desventura para mudar de apartamento (clique aqui para ler mais sobre), em uma semana para lá de atribulada, eu tinha esse casamento para ir. Um pouco de contexto: eu trabalho em uma companhia de alta tecnologia , que apesar de pequenina, concentra escritórios-boutique em duas cidades distintas: Tel Aviv e Beer Sheva. Então, apesar de me fazer presente em um local para trabalhar, a maior parte da operação é remota, conduzida por infinitas vídeochamadas.
O casamento em questão era de um rapaz que trabalha como gerente de produto em Beer Sheva e, portanto, não temos muita interface operacional, mas ele me concedeu a gentileza de um convite para o dia mais importante da vida dele. Fez questão que eu fosse. Achei legal demais.
No dia anterior, perguntei ao diretor de tecnologia, que trabalha comigo em Tel Aviv, se ele iria de carro. Com a resposta positiva, pedi uma carona, que foi prontamente concedida.
O evento aconteceria num daqueles country clubs bacanudos, fora da cidade. Viagem de aproximadamente uma hora e meia de carro. Fomos eu, meu colega de escritório e a esposa dele. Sem muita conversa, mexi no celular praticamente o rrajeto inteiro até chegarmos ao local.
Aí você sabe, né… Recepção de casamento é aquela coisa: uma galera muito arrumada fazendo fila, enquanto um ou dois pobres coitados conferem nome por nome a lista de presentes. Só que esse era diferente — tinha apenas um rapaz para atestar que todos tinham um certificado de vacinação contra Covid para estarem ali. Muito rápido, pouco burocrático.
Ótimo.
Passamos pelo portal da entrada e viramos à esquerda, onde nos deparamos com uma urna. Os israelenses não têm costume de contribuir com presentes de aniversário baseados em uma lista de desejos. É mais pá-pum. Você pega um envelope, coloca uma quantidade de dinheiro significativa dentro (me disseram uma vez que 300 shekels — que dá 450 reais, mais ou menos — é uma quantia de bom tamanho), e joga na urna.

Como eu estava quitando um depósito caução, um mês de aluguel e a comissão do agente imobiliário, dei uma de João Sem Braço ali e, ainda que envergonhadamente, não contribuí com um centavo sequer. Meu carona assinou um cheque, cujo valor posso apenas imaginar, mas que parecera significativo. Deu um autógrafo e jogou no recipiente.
Show.
Entramos no evento e havia várias estações de comida com quitutes deliciosos e um bar central que recepcionava os convidados com taças de vinho. Como não fui a passeio, tratei de começar a comer e beber como se fosse um detento em minha última refeição antes da cadeira elétrica.
Tava tudo delicioso!
Pouco depois precisei ir ao banheiro tirar a água do joelho. Olhei ao redor e nada de encontrar. Andei um pouco até encontrar um salão imenso. Bem ao fundo, o símbolo WC estampado.

Ufa!
Aliás, calma aí, o que quer dizer WC? É abreviação de que? Espera, vou jogar no Google…
Ok, WC quer dizer Water Closet.
Aposto que você não sabia disso também. Já pode dizer que aprendeu alguma coisa nessa leitura.
No corredor para o toilete, um rapaz começou a andar do meu lado.
“Onde é o banheiro?” — ele perguntou, em hebraico, com algumas das poucas palavras presentes no meu vocabulário.
Eu apontei com o dedo.
Ele me agradeceu e falou mais algo, só que agora completamente ininteligível. Fiz aquela cara de pateta de quem não entendeu porra nenhuma.
“Desculpa, meu hebraico não é tão bom”.
Com cortesia, ele trocou para inglês. Era uma fluência boa, sem o sotaque rascante que a maioria dos israelenses apresenta, especialmente ao flexionar o r. Ele falava como um nativo do idioma.
“Noivo ou noiva?”
“Noivo”, respondi.
“Eu também. Somos vizinhos”.
“Ah, bacana, nós trabalhamos na mesma empresa”.
No banheiro, nos separamos (ainda bem!), cada um em uma cabine para fazer o que nos levou lá.
Depois do xixi, trombei com o cara de novo na pia para lavar as mãos.
“Qual é seu nome”, ele perguntou.
“Dani e o seu”
“Lior”.
“É um prazer”.
“O prazer é meu. De onde você é?”
“Do Brasil.”
“Uau, que legal! Sabe, Dani, eu não conheço nenhuma dessas pessoas aqui hoje, então algo me leva a crer que você será meu melhor amigo essa noite”.
“Claro, cara. Vamos curtir juntos”.
Voltamos à festa e cada um agarrou uma taça de vinho. Começamos a conversar e descobri que Lior fizera parte de um grupamento especial no exército israelense e agora estudava cinema. Batemos um puta papo existencial e filosófico, sobre vida, escolhas e decisões.
Era um rapaz bacana o Lior. Me contou da ex-namorada, como tudo terminou durante a pandemia, o quanto fora difícil para ele.
Empatizei.
Comemos alguns quitutes deliciosos, mais uma taça de vinho.
De repente subiu aquele cheiro. Um bastante familiar e muito presente por todos os cantos pelos quais passei em Israel.
“Lior, eu acho impressionante como todo mundo fuma maconha aqui em Israel. Não é tratado como um tabu. Aqui no meio de um casamento, tem um coroa que acabou de acender um”, eu disse, enquanto apontava para um homem descolado, de camisa estampada, brinco e cabelos brancos, que devia estar próximo aos 60 anos.
“Você quer fumar um?”, ele respondeu.
Toda minha herança nascido e criado nos porões do PROERD falou forte nesse momento. Meu corpo começou a se contorcer em fúria e comecei a espumar pela boca, enquanto me controlava para não assustar os convidados ao redor.
“DROGAS? TÔ FORA!” — eu berrei, enquanto dei um tapa de mão espalmada na dele, que segurava o baseado. Fiz isso e logo após dei um gole na taça de vinho que estava comigo, já queálcool não é droga!
Né?

Mentira, claro. Eu só acenei positivamente e respondi em hebraico:
“Lama lóh?”, ou ‘por que não’, em tradução livre.
DANIEL, VOCÊ ESTÁ ESCREVENDO NA INTERNET QUE FUMOU MACONHA? QUAL É O SEU PROBLEMA? O QUE AS PESSOAS VÃO PENSAR? VOCÊ NÃO TEM VERGONHA DE SER UM MACONHEIRO? VOCÊ VAI PARA O INFERNO!
Sossega aí, careta.
Enfim…
Eu e Lior seguimos nossa filosofia de botequim por mais alguns minutos, antes de ouvirmos o cântico que anunciava o início do casório.
Aí eu comecei a perceber que havia algo de errado.
A ‘chupá’ (lê-se rupá) estava lá, como em todos os casamentos judaicos. Chupá é altar, tá? Só para você entender… Só que algo não parecia certo. Ela estava situada ao centro de um tipo de coreto, no meio do jardim. Ao redor do altar, erguiam-se quatro pilastras brancas que emulavam a construção de um antigo templo e, logo atrás, havia um gigantesco moinho de vento artificial.
Era feito para parecer chique, mas o único efeito causado era lembrar um campo de mini-golfe gigantesco.
Um campo de macro-golfe, talvez? Maxi-golfe? Sei lá… Como você chamaria?
Gente rica é universalmente cafona.

Detalhe: o noivo era gerente de qualidade na empresa, então a construção me parecia faraônica demais, comparada ao salário que ele deveria receber. É claro que eu poderia estar errado, pode ser herança de família. Talvez a noiva fosse abastada. Pode ser que eles tenham economizado um tempão para isso…
Criei mil desculpas na minha cabeça.
Aí entrou a moça. Linda, de branco, com um sorriso largo, ela estava de parar o trânsito. Acenou com os braços ao público que a cercava, os olhos em êxtase. Era o momento dela, se preparou para aquilo com tanto empenho, tanto afinco.
Até aí, tudo bem… Eu não conhecia a noiva. Nunca fomos apresentados antes, então qualquer uma poderia sê-la.
Mas aí chegou o noivo… Ele estava com um terno elegante, bem cortado. O cabelo bem aparado pelo barbeiro. Eu não estava assim tão próximo, mas mesmo a uma distância de 50 metros, a situação ganhou contornos de mistério. Ele parecia mais alto e levemente mais atlético, ainda que as demais características físicas parecessem corresponder ao indivíduo que eu conhecia.
“Ah, é o casamento dele. É natural que esteja mais forte, bonito e tudo o mais”. Algo lá dentro de mim já soava como uma emergência em alerta vermelho, mas preferi mentir: sou craque em enganar a mim mesmo.
Com a semente da dúvida plantada, a cerimônia teve início.
Lior ficou ao meu lado, praticando uma tradução simultânea do que ocorria, mas foi divertido porque ele se preocupava em passar informações como se eu fosse uma criança de três anos, que nunca comparecera a um casamento, com comentários do tipo:
“Aquele ali é o rabino!”.
Porra, Lior! Jura, meu camarada?!
A celebração seguiu até o ápice, quando os noivos trocam alianças e o marido quebra o copo. Todos os presentes berram MAZAL TOV (parabéns) e o casal se beija. Bem protocolar.
Por falar em protocolo, comentei com o Lior para cumprimentarmos o recém-casado. Subimos ao altar para desejar felicidades.
A cada passo que eu dava, a semente da dúvida parecia criar raízes na minha cabeça, até consolidar-se em uma árvore frondosa. Agora, que eu estava perto do recém-casado, a uma distância de um palmo, a árvore da dúvida já dava frutos.
O noivo me olhou.
Eu olhei para o noivo.
Sorriso amarelo meu.
Sorriso amarelo dele.
Abraço sem nenhum calor.
“Mazal Tov”, eu digo quase burocraticamente.
“Todá”, ele responde obrigado em hebraico, antes de encerrarmos nossa breve conversa. Ele parte, então, à próxima pessoa que veio para abraçá-lo, fato que deixa a situação um pouco menos constrangedora.
Ok, o noivo me tratou como se nunca tivesse me visto antes na vida dele. ACHO QUE TEM ALGUMA COISA ERRADA AQUI!

Comecei a absorver o tamanho da cagada que fizemos, mas Lior rapidamente chegou para me tirar do transe.
“Vamos buscar no salão em qual mesa devemos sentar”.
Concordei meio atônito, mas antes mesmo de chegar ao extravagante salão de festas, com um imenso lustre e mesas brancas, eu já sabia que não haveria um lugar para mim lá.
Já no local, percebi que Lior seguia a procurar pelo seu lugar de direito entre os convidados. Me aproveitei dessa distração para simplesmente me desvencilhar dele sorrateiramente e correr pelo caminho oposto, procurando a minha carona.
Encontrei ele e a esposa cerca de 30 segundos depois.
“Não conseguimos encontrar o nosso nome em nenhuma das mesas”, disse ele.
Eu sorri e fiz uma pausa levemente dramática.
“Vem cá… Será que a gente não está no casamento errado?!”
A esposa dele então ficou vermelha que nem um pimentão, virou para o marido num ímpeto furioso e exclamou:
“EU AVISEI!!!”
Caímos os três na gargalhada, mas daquele tipo que você quase chega a passar mal de tanto rir, enquanto eles comentavam:
“A gente teve todos os sinais, mas escolheu ignorar! A gente até ouviu o nome deles enquanto o rabino anunciava o casório, mas preferimos ignorar. Só que parece que um noivo que não tem o mesmo nome e que não se parece com o nosso, não pode ser o nosso!”
Continuamos rindo a beça, até que eu lembrei:
“Rapaz, vocês assinaram um cheque para o casal errado!”
Ele parou com aquela cara de “Pura que pariu!”, enquanto a esposa arregalou os olhos. Eu me calei em solidariedade, mas por dentro continuava rindo pra caralho.
Os caras foram ao casamento errado, mas pelo menos pagaram por ele! Eu nem isso! HAHAHA!

Mas o que aconteceu? No mesmo country club bacanudo, havia dois casamentos simultâneos. Um megalomaníaco e pirotécnico e o para o qual fomos convidados, de gente normal. Na entrada, havia uma bifurcação e tomamos o caminho de tijolos amarelos errado, à esquerda. Por isso fomos parar em Oz.
Saímos correndo sem nem falar com o Mágico, até que chegamos ao local correto. Um casamento bem mais modesto e menos pretensioso. Tivemos a sorte de ainda presenciarmos a quebra do copo, assim que botamos o pé entre os convidados corretos.
“MAZAL TOV!”
Fui falar com o noivo. Dessa vez, sem sombra de dúvidas, era o cara certo! Abração nele! Parabéns! Obrigado por vir! E toda aquela cerimônia que você deseja a um amigo recém-casado.
É muito diferente quando o noivo te conhece, sabe?
Fomos buscar nosso lugar para sentar (que agora existia) e nos acomodamos.
Comecei a pensar um pouco no Lior, que não conhecia ninguém na porra do outro casamento, tinha encontrado em mim um amigo, e eu simplesmente o abandonei. Provavelmente ele ficou por lá me procurando depois.
“Onde será que o Dani foi?”
Fiquei tão envergonhado que nem disse nada a ele. Vai ver era pra ser assim mesmo.
Enquanto isso, começaram a servir os pratos. A esposa do meu carona recebeu um peixe que estava com uma cara péssima e, alguns segundos depois, as luzes da seção onde estávamos piscaram bruxuleantemente até apagarem.
Então eu virei de mansinho e falei no ouvido do amigo que me trouxera até ali:
“Vem cá, o outro casamento tava melhor, hein! Não quer voltar não?”

Nota do autor:
Oi, tudo bem? Espero que você tenha se divertido com essa trapalhada digna de filme da sessão da tarde. Os textos deram uma parada por aqui ultimamente porque fiquei sem computador por algumas semanas, mas agora eles vão voltar com tudo.
Se você gostou do conteúdo, se inscreve aqui no meu blog, para receber os textos sempre que eu publicar. Aproveita e deixa aí seu comentário também. Qual foi o momento dessa crônica que mais te agradou?